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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

FLAGRANTES DA VIDA REAL

Há pequenos episódios da vida que nos vão deixando pequenas marcas, curtas lições que nos tocam, enquanto sujeitos de emoções, de afectos e sentimentos gregários.
Factos simples, vividos por gente simples. E que, por o serem, numa sociedade que, ao tempo do conto, marchava, em ritmo acelerado, para o individualismo, o solitário andar por entre as Gentes, me impulsionavam a registá-los pela escrita. Duma forma modesta, para gozo do próprio sentir, mas sem olhar para o umbigo.
Reporta aos anos oitenta, a escrita e o tempo da estória, tendo por lugar um dos anéis metropolitanos, nas imediações do betão e do egoísmo galopante.

É, como já confessei, um conto simples de e para gente simples, que não têm o pé além do chinelo:

TOC' Ó BURRO



- Isso é fome ou sono?!... - , interrogou, com gozado sorriso, o meu companheiro de viagem, sem despregar os olhos da estrada de Mafra, com algum trânsito naquela hora.
- O que há-de ser - retorqui-lhe - se já passa da uma da tarde e anda para aqui um bichinho a roer! Ainda falta muito para a Malveira?
- Ainda agora saímos de Torres! .... O melhor é pararmos no primeiro restaurante que aparecer na estrada...
O nome não era muito sugestivo, mas adequava-se àquelas paragens saloias:
"TOC'Ó BURRO". Uma seca imagem de palha de centeio, para um almoço que se desejava farto e suculento...
A sala de jantar era na cave, decorada com o jeito típico daquelas gentes, bem no coração da zona saloia. E, desde a ferrugenta roda de carroça à albarda suja dos burricos, havia de tudo um pouco na decoração das paredes daquela casa, para turista comer.

- Eu quero chispe. Mas com bastante hortaliça, se faz favor!
O homem olhou-me, de semblante pensativo, e foi rabiscando a encomenda num pequeno bloco de notas.
A sala estava pouco concorrida. Três sujeitos, numa mesa central, atiravam-se, com voracidade, a uma farta dose de bacalhau com grão. Num canto, um jovem casal, com ares de estranja, bebericava, palrador, umas coca-colas, não dispensando o baldinho de gelo.
- Cá está! Olhe, vai-me desculpar, o chispe costuma ser servido com feijanito, mas teve que ser com grão, pois a cozinheira não o encontrou...e se eu tenho para aí tanto e do bom! - e continuou, em tom humilde: - sabe, a minha mulher, a alma desta Casa, foi ontem para o Hospital.....é uma chatice!...
E virou as costas, acabrunhado, com o rosto crispado de preocupação.
Na verdade, não obstante a qualidade das instalações e o gosto na típica decoração do "TOC'Ó BURRO", notava-se no ambiente a falta duma mãozinha providencial.
Ocupava-me, com gula mal disfarçada, dum chispe bem guarnecido, quando o nosso hospedeiro se abeirou da mesa, com expressa intenção de auscultar a disposição dos clientes. Antes que dirigisse qualquer pergunta, lancei-lhe uma observação reconfortante, que, valha a verdade, mais não foi que uma "mentirinha" piedosa:
- Afinal, isto está bom! O grão até lhe dá mais paladar!....
- Ah, sabe, eu só lhe disse que e hábito servir o chispe com feijão por o senhor poder voltar e estranhar a diferença. De resto, o grão também é bom....pois!
Mas ninguém precisaria dum canudo em Psicologia para lhe notar o preocupado nervosismo, a agitação interior que o electrizava, mesmo quando, junto à porta que separa a sala de jantar da cozinha, repreendeu, com drásticos modos, os dois miúdos, talvez, seu filhos, que brincavam num pequeno triciclo.
E já passava das duas da tarde quando, no primeiro piso, onde funcionava o Café-Bar do estabelecimento, nos prestámos a pagar os almoços.
- .....olhe, e as melhoras da sua senhora! - Foi o que me ocorreu oferecer ao atarantado hospedeiro, em jeito de lenitiva gorjeta.
Dois meses eram passados. Continuava no bulício da capital, onde tanta gente é sempre tão pouca, onde cada um vive em si e para si, entrincheirado na fortaleza da indiferença e do individualismo.
Aquele, pensava eu, banal episódio, ficara arquivado na pasta do subconsciente, junto aos demais. O "mexe-mexe" do dia a dia - do presente - não permite espaço para outro lugar ou para meditações nas pequenas coisas do ontem...
Descia a Morais Soares, ali ao Chile, procurando furtar-me às cotoveladas impiedosas e apressadas dos passantes que, em formigueiro buliçoso, se atropelavam passeio abaixo, no final de mais um dia de trabalho.
- Amigo, amigo! -, e senti o braço apertado, enquanto travava a marcha. -Não se lembra de mim? Do TOC'Ó BURRO?!
E lembrei-me. Reconheci o nosso casual estalajadeiro, agora sorridente. Ocorreu-me, também, que os miúdos, ao lado, seriam os putos do triciclo, só não me recordava da senhora que o acompanhava.
- Apresento-lhe a minha esposa. Fui buscá-la, hoje, ao Hospital! Felizmente, já está totalmente recuperada! - E os olhos brilhavam-lhe, de satisfação.
Não deixei de mostrar alguma surpresa com a situação. Afinal, não havia passado de mais um entre tantas centenas, milhares, de clientes que frequentavam aquele restaurante! E, até, só lá entrara daquela vez.....
- Olhe, amigo, quero convidá-lo para ir almoçar um dia destes ao TOC'Ó BURRO. Desta vez quem paga sou eu, a cozinheira vai ser a minha mulher e vai comer chispe com feijão!...
- Mas...o senhor ainda está preocupado com isso?! Se até lhe disse que o almoço estava bom!...
- Não está a compreender, meu caro! É que eu sou saloio, mas não sou parvo, nem mal agradecido. O amigo foi a única pessoa, nestes dois tristes e longos meses, e tive milhares de clientes, que se lembrou de desejar as melhoras da minha senhora. E ela aqui está, já restabelecida, como vê!
Fiquei siderado, agradavelmente surpreendido. Não tive oportunidade, até hoje, de voltar a passar por aqueles lados, mas não resisti a narrar este flagrante da vida real.
E ficar a reflectir como, por vezes, uma frase, aparentemente, tão banal, pode despertar humanismos e sentimentos solidários, mesmo que as pessoas sejam "saloias".......