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quarta-feira, 17 de outubro de 2007

CONTO ARQUIVADO

CONCLUSÃO

Já eram quatro da tarde daquele agitado domingo quando o cadáver, após ter sido arrastado até à aldeia, foi carregado por uma dezena de braços fortes na caixa do jipão.
Era o regresso. Antes, porém, ainda no povoado, fora o almoço: frango "à cafreal" com xima de milho e sumo de caju.
Para o Carlos, apesar dos seus insistentes protestos, ia uma cangarra de malákus e um cacho de bananas. Eram pessoas generosas e gratas, os macuas.
- Senhor, eu pode ir? - perguntou o Régulo Matico, rodeado pelo seu povo. - Vai dar-me xicuembo?
Referia-se à gordura que reveste os intestinos do leão. Entre os macuas e, até, parte da colónia de indianos e europeus, havia a convicção ser aquela gordura um excelente remédio para o reumatismo e até doenças do foro íntimo, para além de potente afrodisíaco.
- Mas o leão é vosso, podem fazer dele o que quiserem!...
- Não, senhor é dono. Quem mata é dono, mais ninguém. - atalhou o Sanica, dando a conhecer mais um dos ancestrais costumes dos nativos.
Já o motor do jeep roncava alegre pela picada.
Desta feita, com mais cuidado, não fosse mais uma vez a ponte tecê-las...
Chegaram tarde ao Largo do Posto. Já os miúdos da Missão, de visita à sede administrativa, brincavam, chilreantes, após a cerimónia do arrear da Bandeira.
O Administrador, sentado com a esposa e filhos à sombra duma frondosa buganvília, dirigiu-se-lhes apressado e interrogativo:
- Então, Carlos, que tal a caçada? Já estava preocupado com tanta demora! Oh...mas que grande bicho!... - largou, estupefacto, ao debruçar-se na borda da viatura. - É um grande animal!
Surgem as explicações de toda a ordem, o onde, o quando e como, dão os parabéns, vai chegando mais gente, curiosa. A notícia corre célere e aparecem, também, os europeus da terra: o Fonseca da cantina e a mulher, o Carvalho do algodão e as filhas e pessoal do destacamento militar que ali se encontrava aquartelado por questões de quadrícula, já que não havia, ao tempo, qualquer conflito latente naquela zona.
Todos se encontravam ali mais empenhados em registar na película a sua momentânea comunhão com o senhor da selva. Os de camuflado não perderiam o ensejo para enviarem uma foto de ocasião às suas madrinhas de guerra, saudosas, em Portugal.
Durou horas aquela peregrinação fotográfica, a quebrar a monotonia sertaneja dos pacatos dias de Balama, enquanto o Administrador Barbosa ia passando o tempo a lamentar o exagerado esburacar da pele, que a deixava pouco prestável para a sua desmesurada colecção de curtumes, na tal salgadeira do armazém.
Quanto ao Carlos, esse tivera direito a algumas duras unhas de leão. Se para mais não servissem, ajudá-lo-iam a esgadanhar nos escolhos que se lhe foram deparando na encruzilhada da vida...
Por longos anos se foi falando no Norte de Moçambique do tristemente célebre "Leão dos 16". Triste sorte, negro o fado daqueles macuas, pois antes, então e depois, foram sempre vítimas de leões despudorados, mais carniceiros que aqueles, com jubas de todas as matizes.
E dessas feras, nem Carlos, nem Sanicas, nem Sacuras, os conseguiram livrar...

Quanto ao autor, tendo passado ao papel este seu conto já lá vão muitos anos, só agora ganhou coragem para o compartilhar, menos por preguiça, mais por temor àqueles cartazes que se vão vendo em alguns estabelecimentos de venda de armas e associações de caçadores: "AQUI SE JUNTAM CAÇADORES, PESCADORES, ADVOGADOS....E OUTROS ALDRABÕES...".
Mas vale a pena correr o risco, suplantado pelo testemunho do maravilhoso fascínio das terras moçambicanas, na sua original e genuína natureza!


FIM