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sexta-feira, 12 de outubro de 2007

CONTO ARQUIVADO

(continuação do post anterior)



E a velha fera, bacharel em caça, não se fazia rogada: alta noite, abeirava-se, sorrateiramente, e esgadanhava as unharras na parede frágil da palhota onde se alojavam os catraios da família. E, enquanto os pais dormiam na casa ao lado, a uns escassos dez metros, os miúdos acordavam assustados, gritando pelos "velhos" em desespero. Mas o leão não forçava a entrada. A mãe dos garotos acorria aos gritos aflitivos dos filhos e era recebida pelo leão, de bocarra aberta, que a arrastava, presa nos seus caninos devoradores, para longe, pois o macabro repasto era sempre em recatada sala de micaias, na selva fechada.

Era este o ardiloso estratagema, como já referi, pouco comum no comportamento habitual dos leões, mas utilizado nos casos concretos que o Carlos foi ouvindo com um misto de estupefacção e de medo, enquanto coçava a meia dúzia de pêlos que lhe despontavam no queixo esguio. Que raio! Por aquela é que ele não esperava mesmo! Fora caçador, sim senhores, de pardais descuidados, de melros desaninhados, caídos na sua fisga infantil, mas qualquer cão rafeiro o fazia fugir, hirto de medo, só pelo ladruçar raivoso, quanto mais uma fera daquelas!... Mas não era ele o adjunto do posto, aquela gente não viera até ele procurando ajuda?! Não se sentia no direito de lhes defraudar a expectativa de alívio para os seus males. E lá foi vestindo rija pele de valente, enquanto ia vertendo consoladoras promessas de justiça e vingança nos corações condoídos pela perda de familiares. A seguir, foi vê-lo qual D. Quixote do Índico, a preparar os seus bravos Sanchos e a escolher as armaduras com que havia de partir os dentes ao assassino.

A caçada ia começar....

- Sanica, chama mais dois cipaios. Traz a tua Mauser e vê se o Land-Rover tem gasóleo, e vamos embora!

- Senhor adjunto, o senhor administrador não tem de saber? - lembrou o cabo, em respeitoso reparo.

- Tem, pois é... vai lá dizer-lhe, mas, se estiver a dormir, deixa o recado à senhora ou ao mainato.

Entretanto, o numeroso grupo corria já em direcção ao povoado. Iam dar a nova e preparar toda a gente para a batida. Conhecedores dos caminhos secretos da mata densa, encurtavam muito os cerca de quarenta quilómetros que os separavam do Lúrio.

O Carlos não levava a Mauser, como os cipaios. Não simpatizava com aquela espera-pouco de madeira, muito menos com o seu coice demolidor. Só mais tarde lhe viria a reconhecer vantagem. No momento, preferiu munir-se duma pequena pistola metralhadora FBP que o governo lhe havia distribuído.

Já acomodados no jeep cinzento, o cabo e o adjunto na cabina e os outros dois lá atrás, na caixa larga, passaram pelo barracão do posto, para o abastecimento. Este barracão era um misto de armazém e fábrica de curtumes, um casarão de troncos de umbila e capim seco, onde, por entre tambores de gasóleo e outras mixórdias, se espalhavam as peles que o administrador Barbosa, o grande senhor da terra, ia coleccionando, sabe-se lá se para fazer jus à sua nobre condição de herdeiro do Mouzinho... Brilhantes as de jacaré, pardacentas as de itata, muito valiosas seriam as de leopardo, mas as esteticamente mais sugestivas seriam as das zebras, pelos desenhos artísticos, a duas cores: a escura, dos naturais e a branca, dos europeus.

Num canto do armazém, com as mãos sabujas de unguentos, o negro Magemba, químico de ocasião, amanhava mais uma pele de lince que ia exalando um odor horripilante...

- Não podemos demorar! A esta hora já o Matico com a sua gente está a chegar ao Lúrio...

- Ainda, senhor. Parece agora estão passar Monte Nivato. - resposta pronta do Sanica, com um sorriso sabe-tudo nos lábios gretados pela suruma, enquanto apertava a espingarda contra as cabedulas de caqui branco, domingueiro.

O jipão rosnava forte na picada estreita, cabrito da serra, de pedra em pedra. Estremecia, pulava, parava, acelerava, que o piso de matope esburacado, ondulado, mais parecia o mar encrespado ao largo de Matosinhos. Mas o Land-Rover era uma boa traineira, concebida para sulcar aqueles caminhos improvisados na selva, onde nunca haveriam de chegar os "pidacs" e os "feders" da CEE. Surpreendente era também a resistência daqueles pneus a que nem mossa faziam as constantes mordeduras de troncos salientes, espreitando, disfarçados, nos tufos de capim verde. Uma viagem assim era um verdadeiro exercício físico, ainda mais desgastante que viajar de Aveiro a Viseu na velha automotora da Linha do Vale do Vouga!.....

(continua....)