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terça-feira, 16 de outubro de 2007


CONTO ARQUIVADO
Continuação...
Aproximavam-se já do monte, em cujas fraldas, de vegetação cerrada, estaria o refúgio do leão devorador. Mas nem o Matico, nem alguém da aldeia, sabia indicar ao certo o local, tal a vastidão da área.
- Vamos fazer a batida por bocados, Sanica?
A ideia era dividir toda a zona arborizada, entre a clareira e o monte, por faixas a bater.
Dividiu-se o pessoal: o da batida (a barulhaça) para um lado, os armados para o outro.
Ia começar a festa!
- Nós é melhor ficar ali! - apontava o Sanica para um morro de mochem, abrigo natural para a espera.
Os dois cipaios e o caçador foram-se, também, dispondo na zona.
Já o Carlos sentia um leve tremor no corpo, uns arrepios gélidos num sol escaldante(!), mas que se iam diluindo na azáfama. Tinha a impressão, sentia-o ao fitar os rostos excitados dos outros, que com feras daquela estirpe não se brinca.
Fosse pelos nervos, fosse pela fome, estava em jejum, o cara pálida sentia um palpitar doloroso no estômago, quando se acocorou numa pequena saliência do morro baixo.
Era quase meio dia. Um silêncio sepulcral dominava o ambiente. Nem um leve esvoaçar da passarada, nem o cair duma folha seca, o rastejar furtivo de uma cobra ou a corrida elegante e vaidosa de uma gazela!....
De repente, como o trepidar de fúria louca de uma manada de elefantes rasgando a selva, como o alarido raivoso de mabecos em luta pela posse de um javali, a serra ecoa, o ar sacode-se.
Todos aqueles tambores rufando, latas chocalhando e os sonoros berros das gargantas fortes dos nativos da batida, na outra orla da mata, impressionavam mais que o sapatear raivoso do nosso Parlamento em dias de polémica orçamental ou periodos eleitorais...
A selva tremia, o barulho aumentava, na justa medida em que os batedores iam cruzando a mata em direcção aos emboscados.
Só que já estavam bem perto e não havia sinal do rei da selva. Nenhum disparo soara, até ao momento...
- Ei, Sanica, o gajo não está cá! - diz o Carlos, quebrando a concentrada atenção do cabo, a focar a mata, rígido que nem uma marmota congelada.
- Parece não está, senhor. - sem, contudo, desviar os olhos desorbitados do arvoredo.
E não estava, de facto, naquela faixa. Deu-se o encontro dos dois grupos e leão....nem vê-lo!
Curiosamente, nem um coelho, uma gazela, um javali, nenhum animal passara em frente dos emboscados. A esta contestação do adjunto, observou o caçador, com segura convicção:
- Pois não tem outro bicho, porque leão está perto. Nosso vai encontrar, já viu pegada fresca....
O Carlos, sempre aprendendo, ficou a saber que numa área considerável em redor do palácio do rei leão, não havia lugar para outros animais menores. Os súbditos, amedrontados, fugiam perante a presença ameaçadora do seu despótico amo.
A ser assim, nada estava perdido, tanto mais que havia fortes indícios da presença próxima do devorador.
Ia tentar-se a faixa seguinte. A operação repete-se no terreno.
Desta feita, à falta de outro abrigo, o Sanica sugeriu ao Carlos uma árvore velha de melala bifurcada. Era este o poleiro de espera para o mocunha, com a pele ardendo sob a inclemência do sol do fim da manhã. Por baixo, brilhavam as micas soltas duma ribeira, seca naquela época do ano.
Enquanto esperava, de novo, ia pensando na sua caricata posição, qual ave no choco e deu consigo a conspirar, surdamente, contra o Sanica por lhe ter alvitrado aquele refúgio de abutre medroso. O sacana do cabo pensaria que ele tinha medo?! Mas, intimamente, até se sentia bem posicionado. Do pouco que sabia, os leões não voavam e ali não haveria perigo. Mas não se desvaneceu, de todo, aquele tremor de dedos.
A algazarra recomeçara, ao longe. De novo os tambores, as latas, os apitos, os berros musicais do outro grupo, que se ia aproximando.
De repente, bem ao lado, soa um tiro.
O Carlos, estendido num ramo, redobra de atenção, com a pistola metralhadora pronta a disparar...; tac....tac....tac.... o coração batia-lhe forte, como cavalo em solto galope na pradaria. O suor aumentava-lhe no rosto, o ar rarefazia-se nos pulmões, quando, mesmo por baixo, a uns escassos três, quatro metros, na vertical, o nosso leão, com as patas enterradas na areia, olhava pesadamente para um e outro lado da ribeira, desconfiado. Ouvia-se, nitidamente, a densa respiração da fera, uma bizarma medonha, grande, nutrida.
E agiu, então, como um autómato; a adrenalina tinha-o quase em bloqueio na presença de tão leonina figura! Ensaiou uma duvidosa pontaria na direcção do monstro e disparou uma rajada breve, sem se preocupar com a escolha dos pontos mais vulneráveis. Bastou-lhe divisar a massa enorme do bicho na mira e carregar o gatilho. Era difícil, quase impossível, não acertar, de cima para baixo, àquela distância!
Mas, ao contrário do que pressupunha, aquele não tombou: soltou um urro arrepiante e empreendeu um salto descomunal, embrenhando-se pelo capim alto.
E o nosso jovem manteve-se quieto, mudo e surdo, por uns instantes.
Veio-lhe, depois, um pensamento derrotista: falhara! E saltou da árvore.
Na areia seca, nem um pingo de sangue e ia cogitando como era difícil não lhe ter acertado!...
Procurou o Sanica com os olhos, mas o cabo não estava à vista e continuou a remoer no sucedido, quando troaram mais dois tiros de caçadeira.
- Senhor, já está! O gajo já morreu, tem ali....o caçador Sacura encontrou caído lá..- , gritava o Sanica, entusiasmado.
- Encontrou caído?! Mas não foi ele quem o matou com aqueles dois tiros? - interrogou o Carlos, já bem mais animado.
- Não, senhor - voltou o cabo - o gajo já estava sofrer p'ra morrer, com tiros de senhor adjunto. Sacura deu tiros para segurar ele, que leão ferido fica perigoso mesmo!....
Começou a desvanecer-se aquela sensação amarga de fracasso, Afinal, acertara-lhe!
Quando chegou, com o cabo, junto do animal moribundo, o Sacura fez questão de lhe mostrar os três pequenos furos com que o Carlos o havia atingido na espádua. Só que, como aquele continuava a explicar, aquela zona do corpo é dura, não dá para matar logo, com balas de 9 mm. Ele, sim, atirara como um bom caçador, bem na cabeça do gigante...e os zagalotes desfizeram-lhe o focinho...
Mas já um verdadeiro festim começara: uns cantavam, outros dançavam, fez-se batuque com o rufar dos tambores, vieram mamanas, vieram catraios, um mar de gente fez circulo em volta do odioso assassino.
O novato Carlos sentia-se com tanta e espontânea lisonja, tanto kuerine, tantos beijos de ousada gratidão que as moçoilas lhe iam depositando na face!
Bem real era para aquela gente o fim de um pesadelo e, também, o vingar dos seus mortos: o castigo do criminoso ditado por um código penal escrito pelo sentir do povo e que de pimentel nada tinha.
E a festa continuou ali mesmo, agora com um estranho ritual, que nunca vira: toda aquela gente alinhou em fila e, um por um, ao som de afinado cântico, foram espetando uma lança, passada de mão em mão, na cabeça do bicho.

continua......