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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

CONTO ARQUIVADO
(continuação)




- Senhor, tem bom?! - interrogam os olhos arregalados do Sanica, fitando o Carlos como se ele acabasse de fugir das amarras do purgatório.
- Não é nada! -, olhando para trás.
à frente, só via aquela chapa cinzenta, barreira que lhe havia ocultado uns bons dez metros de ponte, estreita, como já vimos.
E o jovem Carlos, com nervosismo comprometido, acabou por se rir, quando perspectivou a frio a ridícula cena que durou segundos e podia ter absorvido anos de vida...
Lá para trás, bem no meio da ponte, os dois cipaios estavam ainda sentados, boca entreaberta, olhando, mudos, as águas impávidas e serenas correndo lá no fundo, a mais de trinta metros! As suas armas estavam tombadas, em desalinho, na caixa da viatura.
E pensou, refeito do susto, como teria sido possível atravessar toda a ponte daquela forma.
- Tens de perguntar ao Mussa como é que ele traz o capô solto! Aquilo não se solta de qualquer maneira! - como se quisesse transferir para o pobre mecânico/desenrasca lá do Posto, a sua aselhice e inexperiência, ali tão evidente.
O Sanica não respondeu e, quando ambos saíram do jeep, olharam ao mesmo tempo para os duendes perdidos na floresta, interrogando-se qual deles plantara aquele providencial jambire no azimute desvairado do carro!...Se não fosse aquela amorosa árvore, esperava-os o abismo profundo, na margem do rio...
Os dois cipaios cuspidos, ainda meio atarantados, atravessavam já o resto da ponte, aconchegando nas cabedulas assustadas as camisas desfraldadas pela queda livre a que viram sujeitos.
- Vamos chovar o carro para trás...
Estavam, então, a uns escassos duzentos metros do povoado, onde acabariam por chegar, aliviados.
Depressa o Carlos esqueceu o acidente, retomando o entusiasmo pela caça que, afinal, ali o levara. Tanto mais que aquela multidão, como há muito não vira, armada de zagaias, pontas de lança, arcos, flechas, catanas, machados, tambores, latas e apitos e todo um sortilégio de instrumentos, lhe lembrava, com certa ironia, as hordas de Viriatos nas serranias da Estrela.
Mas, para além do costumeiro cumprimento, uma vénia mal dobrada, aquela mole humana mantinha-se silenciosa, num descampado dominado por quatro mangueiras ramalhudas onde pontuavam já frutos madurados.
O Régulo Matico adiantou-se ao grupo, juntando-se aos ora chegados, acompanhado de mais três ou quatro elementos, seus conselheiros tribais, e um outro negro, ainda novo, armado de espingarda e era caçador de um europeu de Namuno, e que, casualmente, ali havia acampado e se dispusera a ajudar na caça ao leão.
Formou.se ali mesmo um "conselho da revolução" da caça, em que o Carlos desempenhava a cómoda função de moderador. Reconhecia, intimamente, ser o menos credenciado para ditar estratégias. Mas mostrou-se interessado e participativo e, sobretudo, prestava especial atenção aos experientes alvitres que iam surgindo.
O plano para caçar o leão não era assim tão complicado! Consistia, tão só, em formar uma linha de nativos com os instrumentos sonoros e armas rudimentares, de um lado do hipotético esconderijo da fera, enquanto os elementos com armas de fogo se emboscavam nos previsíveis pontos de fuga. É que o Rei da Selva incomodava-se perante um ajuntamento grande e barulhento, habituado que estava à sua vida de anacoreta da mata silenciosa. E era com passada pachorrenta, com manifesto desprezo, que se virava, abanando a cauda, à arruaça que, do género, se lhe deparasse.
- Está tudo bem, mas onde encontrar agora o bicharoco? - e o Carlos olhava, interrogativo, para os seus pares.
- Nosso sabe, senhor. Garramo tem além! O Matico apontava para a encosta arborizada do planalto, ao fundo, e rematava, decidido: - Tem junto do monte. Nossa gente leva lá.....
- Vamos, então!...
E o pequeno exército pôs-se em marcha pelos carreiros das machambas de mapira alta, de campos de milho com massarocas dourando ao sol brilhante.
Aqui e ali iam ficando faixas rasteiras de amendoim e, mais adiante, fartos cachos de bananas marruce, dependuradas de troncos com larga folhagem.
Representava tudo o que ia vendo a base de subsistência, da vida daquela gente, numa economia mista recolectora/produtora. Não era aquela, ainda, um a sociedade consumista. Era a vitalidade de terra forte, que ofertava os frutos na medida do trabalho de cada um: quase sempre suficientes, sem excedentes, mas sem graves faltas.

(continua em próximo post...)