
quarta-feira, 31 de outubro de 2007
Comedor de sardinhas.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Nacala
É mais uma das muitas histórias de amor de quem nasceu ou viveu em África.
domingo, 28 de outubro de 2007
FLAGRANTES DA VIDA REAL II
Outono de 1980.
A coçada gabardina do Fonseca da Lisnave sacudia pingos de chuva, na paragem do 33. Junto aos carris molhados, era o turbilhão de sempre, ao cair da tarde: gente que passa, chega, vai, sobe e desce, em mais uma hora de ponta do tombar do dia. O turno de serviço do fiel de armazém na Doca da outra margem, chamava-o, naquela Segunda-Feira de Outubro, para mais uma noite de vigília por entre carcaças de barcos envelhecidos. Pelas oito da noite, segurava-se na borda do cacilheiro que, apinhado, rasgava as águas sujas do Tejo, na rotineira procura da outra banda. Era um homem quarentão, o Fonseca, de nariz bexigoso espetado em farto bigode que cofiava, pensativo. No outro lado, esperava-o o Ernesto, companheiro de quinze anos de trabalho nos estaleiros. Considerava-o um bom amigo. Ambos moravam para os lados de Campolide e, pelas tardes de Domingo, beberricavam uns copos no carvoeiro da sua sombria calçada. Com este se abria, como um livro, em confidências íntimas, vendendo ao desbarato parte das suas preocupações. O Ernesto apercebera-se, havia já uns tempos, que o Fonseca não estava muito seguro da fidelidade da sua Rosa, com quem "juntara os trapos", já lá iam uns vinte anos, numa capelinha lá para as frescas verduras do Minho e que lhe dera um bonito pimpolho, hoje um rapagão emigrado. Lia-lhe desconfiança nos olhos sempre que dela falava e intrigava-o o ar taciturno que lhe revestia as feições sempre que alguém aflorava a notória diferença de idades entre ambos. - Cá estou, pá! Pega no saco e dá o fora que o barco pira-se, não tarda muito. - Mas o Ernesto, coçando as madeixas desgrenhadas, com uma ruga crescendo-lhe na fronte larga, media o amigo, sem qualquer pressa em abalar. - Então?! Vais ou não vais? Tens algum problema? - Interrogava o Fonseca, estranhando a demora do amigo. - Olha, Fonseca, é uma gaita...tem calma...o Miguel da taberna telefonou há pouco para te avisar que, lá por volta das nove, apareceu um chavalo à tua porta e entrou abraçado à tua Rosa. - Que merda de gozo é lá esse? Levas é com a brilhantina que vais é brincar com o tio do Camões! - E, com os olhos desorbitados, fulminava o acabrunhado companheiro de trabalho. - É verdade, Fonseca! Pergunta à telefonista, lá em cima...foi ela quem me chamou. Vai lá a casa ver o que se passa que eu faço-te o turno...e tem calma! Mas, também te digo, se aquele Miguel tasqueiro mentiu, mando-o contar ciprestes para o Alto de São João!... E, pouco depois, já o Fonseca rumava para a outra margem, fitando, com raiva muda, as amareladas luzes do Cais Sodré. De cabelo revolto, ele que sempre fora de olhares anatómicos nem sequer dissecava os borrachos que, em pavoneio, se bambaleavam barco fora, com pressa das nocturnas delícias que iam procurar, noite alta, na capital. Toldava-se-lhe a vista e as unhas crispavam-se nas asas da negra sacola pousada entre os joelhos irrequietos. - Eu mato-os... eu esfolo-os, eu.....eu.... - murmurava, aturdido, para a imagem que o vidro húmido lhe devolvia. Ainda o transtejo não havia despejado o Fonseca na doca pombalina e já o Ernesto mergulhava em cogitações de toda a ordem, pesando, agora mais friamente, os hipotéticos reflexos de toda aquela charada na ciumenta cabeça do amigo. E se ele os matasse? Sim, ele que até havia comprado uma pistoleta no Martim Moniz, após, seis meses atrás, haver sido assaltado junto à Fonte Luminosa?! E decidiu fazer qualquer coisa, algo que lhe aplacasse a consciência afogueada pela dúvida. - ........... mas vão depressa, que ele está descontrolado e pode fazer alguma! - A Policia acabava de receber mais um telefonema, semelhante às centenas de solicitações, tantas vezes sem nexo, que lhe chegam fios adentro. E, quando o táxi parou na Calçada do Moinho, ali a Campolide, o Fonseca, em correria desenfreada pelos paralelos molhados, bateu à porta de casa. Uma, duas,....quatro vezes seguidas, com pancadas tão fortes que, por entre as craveiras das janelas vizinhas, assomaram curiosos radares de gentes recolhidas, à espreita da "ressaca". Na taberna em frente, com a porta entreaberta, encavalitavam-se, expectantes, o Miguel e toda a turma da sueca e da ginja. Todos ficaram boquiabertos, suspensos, quando viram o Fonseca de pistola em punho, após derrubar a velha porta com um ruidoso pontapé, irromper pela saleta da entrada, gritando: - Rosa, Rosa, onde estás?... A segunda sapatada foi na porta do quarto, do seu quarto, onde parou na ombreira, de punho espetado, ameaçador. A mulher, recolhida por entre as mantas, com as faces lívidas de susto, olhava o marido, o seu Fonseca, espantada e interrogativa. No canto, de pé, estava um jovem estarrecido, ainda mais perplexo quando viu dois policiais manietarem o desorientado homem. Foi então que, de braços abertos, o rapaz correu para a porta e, envolvendo-o num amplexo sem fim, exclamou, emocionado: - Pai! Querido pai!..... - uma lágrima teimosa deslizava pela face bolachuda do jovem -E venho eu de França, depois de tantos anos, para me receber assim?! Há algum problema? - Ó Jorge, Jorge, meu filho! Que maldita trapalhada, mas que confusão! Podia ser uma desgraça..........
Lá fora, quando os policiais se retiravam pela noite escura, acelerando o aliviado passo, continuava a chover, de mansinho, por sobre os telhados baixos da Calçada....ali a Campolide.
sábado, 27 de outubro de 2007
VIAGEM PELAS SOMBRAS

sexta-feira, 26 de outubro de 2007
FLAGRANTES DA VIDA REAL
Factos simples, vividos por gente simples. E que, por o serem, numa sociedade que, ao tempo do conto, marchava, em ritmo acelerado, para o individualismo, o solitário andar por entre as Gentes, me impulsionavam a registá-los pela escrita. Duma forma modesta, para gozo do próprio sentir, mas sem olhar para o umbigo.
Reporta aos anos oitenta, a escrita e o tempo da estória, tendo por lugar um dos anéis metropolitanos, nas imediações do betão e do egoísmo galopante.
É, como já confessei, um conto simples de e para gente simples, que não têm o pé além do chinelo:
quarta-feira, 24 de outubro de 2007
2º bloco de imagens do convívio do Parapato
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
sábado, 20 de outubro de 2007
Gentes de Moçambique
Não sei se algum dia os sociólogos darão uma cabal explicação para o fenómeno. Mas o facto, bem constatado, é que as gentes que, por alguma forma, estiveram em comunhão com terras moçambicanas, continuam, pelas sete partidas do Mundo, a manterem vivos traços muito próprios da sua vivência . Após a diáspora a que foram sujeitos, deixando, de alma ferida, os lugares onde nasceram e cresceram ou, simplesmente, aprenderam a amar, não cortaram as amarras do Índico e, sobretudo, mantém perenes valores que sempre os distinguiram: a amizade, a solidariedade e o espírito franco e aberto. Ultrapassada que foi a, nem sempre fácil, fase de adaptação a novas terras, novas gentes, num recomeçar de vida nem sempre conseguido e que reporta ao final dos anos setenta e a década de oitenta, aí está o pessoal a conviver de novo. Recordando as origens comuns e a marca indelével dum sentir a vida muito peculiar.
No sucedâneo de encontros, reuniões e convívios que se vão organizando um pouco por todo o Portugal, foi a vez das Gentes do Parapato, pessoal com ramos de vida na região macua de António Enes, hoje Angoche. São delas as imagens que passei para este "clip". E, ao olhá-las, chega-nos, pelo olhar, a certeza de que a alegria se mantém para lá das muitas recordações e alguma justificada saudade!
Parabéns, Parapatenses!
Porreiro, pá!

Depois da secular ligação a África e ao Oriente, não nos restava outra alternativa. A Europa a que, de há muito, passe a nossa saga de emigração, havíamos voltado as costas, era o nosso natural destino político-económico. A nossa adesão à actual União Europeia foi, por isso mesmo, pacífica e quase consensual no nosso espectro político-partidário. Sem jamais nos esquecermos que essa integração plena não passa só por colher dividendos e eternos apoios, cumpre-se o nosso Futuro enquanto nação antiga deste velho continente. Por tudo, também eu, não sinto qualquer pejo em elogiar e reconhecer o trabalho empenhado de Sócrates e da sua equipa (sem esquecer o dinâmico, quiçá primordial, contributo de Durão Barroso)! Foi um bom trabalho, de sapador diplomático em busca dos necessários e imprescindíveis consensos, para a unânime aprovação do Tratado. Só mesmo com essa Carta de compromissos, vinculativa a todos os membros, a União terá mesmo pernas para andar.
É hora, agora, de olhar para dentro e, com o mesmo ânimo, compreender o Povo de que é Governo, com a mesma humildade com que soube relacionar com os seus parceiros europeus, enfrentar os problemas internos, inverter rumos, rectificar injustiças e assumir que, antes de tudo, estão as pessoas, as suas carências e necessidades básicas, estão os legítimos anseios e, sobretudo, a dignidade dos cidadãos deste País, contribuintes líquidos dum Orçamento com poucas preocupações sociais.
É esse o Povo que, sabendo reconhecer-lhe o mérito da vitória europeia, espera não continuar a ser, por incúria e alguma arrogância, sistematicamente, maltratado.
Se assim for, e só assim, lhe diremos um dia:
PORREIRO, PÁ!...
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
GUERRAS....Malditas guerras.....
A Guerra do Ultramar, A Guerra Colonial, A Guerra de Libertação.................Cá fica o vídeo do 1º Episódio, sob o tema debatido no Prós e Contras. Mas, já agora, porque, como era inevitável, o programas, e a sua essência, já está a provocar as naturais e legítimas reacções, vou adiantar algo mais.
No site da Guerra do Ultramar, Colonial ou de Libertação, como lhe queiramos chamar, que eu considero ser o mais completo e abrangente da net, no seu âmbito,(http://ultramar.terraweb.biz), os diferentes pontos de vista dos ex-combatentes já começaram a evidenciar-se. O que é perfeitamente natural e respeitável.
Só me exasperou a posição de um ou dois dos "comentadores" que, numa visão superficial e redutora, entendeu desancar nos "cantineiros do mato", como se fossem eles os mentores do colonialismo, o odioso de toda aquela guerra!
Eu conheci centenas de cantineiros espalhados pelos lugares mais recônditos do mato de Cabo Delgado. Conheço a vida que levavam, perdendos os anos na solidão da selva (provavelmente, em iguais condições de vida dos militares que por lá passaram dois anos, sem dar um tiro). Sei que, no seu seio, como em tudo, havia gente honesta e desonesta. E sei, também, do quanto, muitos deles, foram mais do que "pais" para os militares que por lá andavam e passavam.
(Seria o mesmo eu, agora, desancar no Jerónimo Martins, Belmiro de Azevedo e quejandos, pelos lucros que auferem nos seus supers e minimercados, culpando-os da crise económica e do aumento do custo de vida que o país atravessa!....)
Como se os verdadeiros "exploradores" e os que mais lucravam com o propalado colonialismo fosse aquela gente, a fazer pela vida, grande parte sem dela usufruirem qualquer qualidade. E sei como, muitos deles, pagaram com a vida e com os seus bens o arrojo de viverem no mato, isolados, longe de tudo e de todos!
Foi motivo bastante para que o meu comentário àquele programa da RTP1 (Prós e Contras) se desviasse do cerne da questão. E saíu-me este, que transcrevo:
Face às avalizadas opiniões já aqui expressas, pouco mais teria a acrescentar, a propósito deste tema. Revejo-me nas perspectivas da maioria dos que me antecederam nos comentários, mormente as opiniões esclarecidas dos primeiro e último intervenientes: o Vitor Baião e o António Cadete. Não deixei foi de, pela leitura que fiz de algumas intervenções aqui postadas, de reforçar a convicção que já ia tendo, passe a assunção de que são respeitáveis todos os pontos de vista pessoais, do divisionismo que grassa no seio dos ex-combatentes, com reflexos, dificilmente sanáveis, nas suas organizações representativas. Esquecemos o essencial, as dificuldades por que, na maioria, passámos e da nossa dádiva à Pátria, quando deviam ficar para outros patamares de discussão a justeza ou injustiça daquela Guerra. Quando, até, se lê por aqui terem sido os "cantineiros" o odioso daquele conflito armado, podemos bem aquilatar do disparate que grassa nas mentes de alguns ex-combatentes. Como se alguém, minimamente informado, pudesse "descobrir" nos cantineiros espalhados pelo mato moçambicano, os verdadeiros colonialistas!... É uma visão redutora, injusta, verter nessa gente o ferrete duma guerra. Como seria, alguém alijar esse labéu naqueles desonestos militares que, sem escrúpulos, vendiam, em proveito próprio, a esses mesmos "cantineiros do mato", o azeite, as batatas, o bacalhau, o gasóleo...destinado à logística das suas unidades! Perdemo-nos com o acessório. O essencial radica, como sempre defendi, que a descolonização era inevitável. Falhou foi, duma forma trágica e lesiva da consciência colectiva, no tempo e no modo, porque, essa inevitabilidade que já todos, ao tempo, reconheceríamos, não pressupunha nem apontava para a forma atabalhoada, sem honra e sem vergonha, como lhe demos desfecho, à revelia do sentir das populações. Sem qualquer pressuposto democrático, num país que, desde o 25A vem enchendo a boca de Democracia. Pior, bem mais humilhante, será a forma aviltante como o Poder instituído, o mesmo que legisla e decide em nome da Pátria, tem tratado os ex-combatentes, os tais que lutaram em nome dessa mesma Pátria (os Poderes mudam, mas a Pátria é a mesma!...), os portugueses de sempre e os que o eram nos territórios hoje independentes e que terceram armas, sofreram e tombaram bem ao nosso lado, fosse qual fosse a pigmentação da sua pele. E, com os divisionismos já atrás aflorados, errando os alvos, estamos claudicando perante aqueles que não sabem, ou não querem, reconhecer a dívida que o Estado tem para com os seus servidores que sofreram, na carne e na alma, no cumprimento de uma missão que a Pátria lhes impôs!
Saudações, combatentes.....todos!
quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Todos se encontravam ali mais empenhados em registar na película a sua momentânea comunhão com o senhor da selva. Os de camuflado não perderiam o ensejo para enviarem uma foto de ocasião às suas madrinhas de guerra, saudosas, em Portugal.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Os dois cipaios e o caçador foram-se, também, dispondo na zona.

continua......
segunda-feira, 15 de outubro de 2007
à frente, só via aquela chapa cinzenta, barreira que lhe havia ocultado uns bons dez metros de ponte, estreita, como já vimos.
E o jovem Carlos, com nervosismo comprometido, acabou por se rir, quando perspectivou a frio a ridícula cena que durou segundos e podia ter absorvido anos de vida...
Lá para trás, bem no meio da ponte, os dois cipaios estavam ainda sentados, boca entreaberta, olhando, mudos, as águas impávidas e serenas correndo lá no fundo, a mais de trinta metros! As suas armas estavam tombadas, em desalinho, na caixa da viatura.
E pensou, refeito do susto, como teria sido possível atravessar toda a ponte daquela forma.
- Tens de perguntar ao Mussa como é que ele traz o capô solto! Aquilo não se solta de qualquer maneira! - como se quisesse transferir para o pobre mecânico/desenrasca lá do Posto, a sua aselhice e inexperiência, ali tão evidente.
O Sanica não respondeu e, quando ambos saíram do jeep, olharam ao mesmo tempo para os duendes perdidos na floresta, interrogando-se qual deles plantara aquele providencial jambire no azimute desvairado do carro!...Se não fosse aquela amorosa árvore, esperava-os o abismo profundo, na margem do rio...
Os dois cipaios cuspidos, ainda meio atarantados, atravessavam já o resto da ponte, aconchegando nas cabedulas assustadas as camisas desfraldadas pela queda livre a que viram sujeitos.
- Vamos chovar o carro para trás...
Estavam, então, a uns escassos duzentos metros do povoado, onde acabariam por chegar, aliviados.
Depressa o Carlos esqueceu o acidente, retomando o entusiasmo pela caça que, afinal, ali o levara. Tanto mais que aquela multidão, como há muito não vira, armada de zagaias, pontas de lança, arcos, flechas, catanas, machados, tambores, latas e apitos e todo um sortilégio de instrumentos, lhe lembrava, com certa ironia, as hordas de Viriatos nas serranias da Estrela.
Mas, para além do costumeiro cumprimento, uma vénia mal dobrada, aquela mole humana mantinha-se silenciosa, num descampado dominado por quatro mangueiras ramalhudas onde pontuavam já frutos madurados.

Formou.se ali mesmo um "conselho da revolução" da caça, em que o Carlos desempenhava a cómoda função de moderador. Reconhecia, intimamente, ser o menos credenciado para ditar estratégias. Mas mostrou-se interessado e participativo e, sobretudo, prestava especial atenção aos experientes alvitres que iam surgindo.
O plano para caçar o leão não era assim tão complicado! Consistia, tão só, em formar uma linha de nativos com os instrumentos sonoros e armas rudimentares, de um lado do hipotético esconderijo da fera, enquanto os elementos com armas de fogo se emboscavam nos previsíveis pontos de fuga. É que o Rei da Selva incomodava-se perante um ajuntamento grande e barulhento, habituado que estava à sua vida de anacoreta da mata silenciosa. E era com passada pachorrenta, com manifesto desprezo, que se virava, abanando a cauda, à arruaça que, do género, se lhe deparasse.
- Está tudo bem, mas onde encontrar agora o bicharoco? - e o Carlos olhava, interrogativo, para os seus pares.
- Nosso sabe, senhor. Garramo tem além! O Matico apontava para a encosta arborizada do planalto, ao fundo, e rematava, decidido: - Tem junto do monte. Nossa gente leva lá.....
- Vamos, então!...
E o pequeno exército pôs-se em marcha pelos carreiros das machambas de mapira alta, de campos de milho com massarocas dourando ao sol brilhante.
Aqui e ali iam ficando faixas rasteiras de amendoim e, mais adiante, fartos cachos de bananas marruce, dependuradas de troncos com larga folhagem.
Representava tudo o que ia vendo a base de subsistência, da vida daquela gente, numa economia mista recolectora/produtora. Não era aquela, ainda, um a sociedade consumista. Era a vitalidade de terra forte, que ofertava os frutos na medida do trabalho de cada um: quase sempre suficientes, sem excedentes, mas sem graves faltas.
(continua em próximo post...)
domingo, 14 de outubro de 2007

A uma centena de metros, os mais brincalhões habitantes da floresta, almoçavam lauto banquete: uma refeição gratuita, servida pelo suor dos nativos que, e não só por isso, detestavam a macacada.
O Carlos afrouxou e parou o carro, ensaiando fortes aceleradelas, no intuito de os amedrontar. Os bichos olharam curiosos e, depois de estudarem a situação, continuaram a ladroagem, arrancando á terra, com primata avidez, enormes tarolos de mandioca que devoravam sem cerimónia. Os mais velhos carregavam às costas pequenos filhotes de pêlo azulado, tupilis reguilas, imaturos nos trabalhos de pilhagem.
- Sanica, corre-os a tiro!
O cabo esfregou as mãos contentes, saiu da cabina e....pum!...o macaco mais corpulento tombou, de ventre para o ar, lançando gemidos que confundiram o Carlos. Aquele choro aflitivo tinha qualquer coisa de humano, de súplica desesperada. Com a cabeça entre as patas, como que a rogar clemência, o bicho foi-se virando, lentamente, até que sucumbiu encostado a um ramo de mandioca. Os outros nem vê-los! Haviam fugido para as árvores mais altas e frondosas, onde aguardariam, nervosamente, que os primos, mais inteligentes, mas bem mais maldosos, abalassem.
- Hoje já tens almoço, Sanica!
Este, com um trejeito comprometido, olhou de novo para trás, para a caixa do jeep, onde imaginava já uma negra caçarola bem cheia de saboroso caril de macaco, cozinhado com bastante piri-piri...
- Vou também dar um bocado ao Issufo e ao Jamú! -enquanto acenava com a cabeça na direcção dos dois cipaios que viajavam de pé, na retaguarda, como que prestando honras fúnebres à vitima ensanguentada do seu cabo.
Nem todos os nativos de Moçambique comiam carne de macaco. Faziam-no os macuas, mas, mesmo no seio dessa etnia, só certos nihimos a incluíam no menu.
Porque, até na alimentação, eram diversos os costumes dos numerosos grupos étnicos daquele país. Como o são, adiante-se, as suas crenças, dialectos, personalidade e anseios. Nestes aspectos, Moçambique é uma autêntica manta de retalhos, em que só o espírito de nação, que começa a despontar, e a língua portuguesa são factores de união.
- Ainda falta muito?
- Não, senhor. Depois do rio, além, é mais pouco-pouco. - E o Sanica acompanhava a explicação com um abanar calculista da mão direita, enquanto o sol quente, trémulo de fogo, trepava, apressado e irreverente, pelas vastas escadas do horizonte.

Para o atravessar, o Régulo Matico e a sua gente haviam, anos antes, lançado mãos da sua empírica engenharia artesanal: compridos troncos de árvores, dispostos de um lado ao outro do rio, revestidos por esteira, pacientemente urdida por habilidosas mãos, de bambus entrelaçados.
Mas era precisa muita atenção ao efectuar a travessia auto daquela ponte, pois fora idealizada e projectada bem à maneira daquela gente: à exacta medida do carro do administrador e nem mais uns centímetros!...
Ao Carlos, novato naquelas travessias, habituado que estava a outras travessuras, não ocorreu que urgia reduzir a velocidade, para galgar sem problemas os primeiros troncos e...zás, o carro salta, estrebucha, o capô abre-se, corta literalmente a visão....o jeep segue, bate.....e pára!
(Continua em próximo post...)
sábado, 13 de outubro de 2007
Lá vai barão...


sexta-feira, 12 de outubro de 2007

E a velha fera, bacharel em caça, não se fazia rogada: alta noite, abeirava-se, sorrateiramente, e esgadanhava as unharras na parede frágil da palhota onde se alojavam os catraios da família. E, enquanto os pais dormiam na casa ao lado, a uns escassos dez metros, os miúdos acordavam assustados, gritando pelos "velhos" em desespero. Mas o leão não forçava a entrada. A mãe dos garotos acorria aos gritos aflitivos dos filhos e era recebida pelo leão, de bocarra aberta, que a arrastava, presa nos seus caninos devoradores, para longe, pois o macabro repasto era sempre em recatada sala de micaias, na selva fechada.
Era este o ardiloso estratagema, como já referi, pouco comum no comportamento habitual dos leões, mas utilizado nos casos concretos que o Carlos foi ouvindo com um misto de estupefacção e de medo, enquanto coçava a meia dúzia de pêlos que lhe despontavam no queixo esguio. Que raio! Por aquela é que ele não esperava mesmo! Fora caçador, sim senhores, de pardais descuidados, de melros desaninhados, caídos na sua fisga infantil, mas qualquer cão rafeiro o fazia fugir, hirto de medo, só pelo ladruçar raivoso, quanto mais uma fera daquelas!... Mas não era ele o adjunto do posto, aquela gente não viera até ele procurando ajuda?! Não se sentia no direito de lhes defraudar a expectativa de alívio para os seus males. E lá foi vestindo rija pele de valente, enquanto ia vertendo consoladoras promessas de justiça e vingança nos corações condoídos pela perda de familiares. A seguir, foi vê-lo qual D. Quixote do Índico, a preparar os seus bravos Sanchos e a escolher as armaduras com que havia de partir os dentes ao assassino.
A caçada ia começar....
- Sanica, chama mais dois cipaios. Traz a tua Mauser e vê se o Land-Rover tem gasóleo, e vamos embora!
- Senhor adjunto, o senhor administrador não tem de saber? - lembrou o cabo, em respeitoso reparo.
- Tem, pois é... vai lá dizer-lhe, mas, se estiver a dormir, deixa o recado à senhora ou ao mainato.
Entretanto, o numeroso grupo corria já em direcção ao povoado. Iam dar a nova e preparar toda a gente para a batida. Conhecedores dos caminhos secretos da mata densa, encurtavam muito os cerca de quarenta quilómetros que os separavam do Lúrio.
O Carlos não levava a Mauser, como os cipaios. Não simpatizava com aquela espera-pouco de madeira, muito menos com o seu coice demolidor. Só mais tarde lhe viria a reconhecer vantagem. No momento, preferiu munir-se duma pequena pistola metralhadora FBP que o governo lhe havia distribuído.
Já acomodados no jeep cinzento, o cabo e o adjunto na cabina e os outros dois lá atrás, na caixa larga, passaram pelo barracão do posto, para o abastecimento. Este barracão era um misto de armazém e fábrica de curtumes, um casarão de troncos de umbila e capim seco, onde, por entre tambores de gasóleo e outras mixórdias, se espalhavam as peles que o administrador Barbosa, o grande senhor da terra, ia coleccionando, sabe-se lá se para fazer jus à sua nobre condição de herdeiro do Mouzinho... Brilhantes as de jacaré, pardacentas as de itata, muito valiosas seriam as de leopardo, mas as esteticamente mais sugestivas seriam as das zebras, pelos desenhos artísticos, a duas cores: a escura, dos naturais e a branca, dos europeus.

- Não podemos demorar! A esta hora já o Matico com a sua gente está a chegar ao Lúrio...
- Ainda, senhor. Parece agora estão passar Monte Nivato. - resposta pronta do Sanica, com um sorriso sabe-tudo nos lábios gretados pela suruma, enquanto apertava a espingarda contra as cabedulas de caqui branco, domingueiro.
O jipão rosnava forte na picada estreita, cabrito da serra, de pedra em pedra. Estremecia, pulava, parava, acelerava, que o piso de matope esburacado, ondulado, mais parecia o mar encrespado ao largo de Matosinhos. Mas o Land-Rover era uma boa traineira, concebida para sulcar aqueles caminhos improvisados na selva, onde nunca haveriam de chegar os "pidacs" e os "feders" da CEE. Surpreendente era também a resistência daqueles pneus a que nem mossa faziam as constantes mordeduras de troncos salientes, espreitando, disfarçados, nos tufos de capim verde. Uma viagem assim era um verdadeiro exercício físico, ainda mais desgastante que viajar de Aveiro a Viseu na velha automotora da Linha do Vale do Vouga!.....
(continua....)
quinta-feira, 11 de outubro de 2007
CONTO ARQUIVADO

Amanheceu depressa aquele Domingo de Outubro, 1967. No Largo do Posto, mal o sol espreitou, bochechudo, por entre os cajueiros da mata, sentavam-se velhos negros, encolhidos nas capulanas de caqui barato. Esperavam, em triste paciência, carpindo para os cipaios madrugadores todas as desventuras da sua noite mal dormida.

O Carlos, ensonado e digerindo uma agitada sessão de King que se prolongara noite dentro, levantou a esteira da janela baixa e lançou um "já vou" em contrariado bocejo. O Sanica, depois de uns desajeitados e dispensáveis salameleques, foi regressando para junto do grupo.
Carlos era um jovem de 19 anos. Viera, dois anos antes, das serranias beirãs para aquele sertão africano, fascinante e medonho, belo e arrepiante, caixa grande de mistérios que, sonhador, se propusera desvendar. Os negros da área achavam graça àquele "menino branco" idealista, ao seu espírito aventureiro e despreocupado, com quem os mais novos jogavam à bola, qual fruto verde em chão maduro... Mas, talvez por isso, representava, a seus olhos, a rampa de lançamento, através da qual faziam chegar até ao Administrador de Balama a sua nave recheada de lamentações, pedidos e, mal disfarçadas, exigências. Este era já pessoa idosa, vestuta, que eles não ousavam incomodar, quiçá por respeito àquelas barbas majestosas implantadas em sisuda carranca. Era um cabo verdiano letrado, da Ilha de S. Vicente, branco ou crioulo oxigenado, e chefe duma interessante família, pessoas de esmerada educação.

- Então o que se passa? O içar da bandeira é só às oito e vocês vieram para aqui tão cedo?! - perguntou, em tom de graça para desenferrujar a língua muda do Régulo Matico, um bondoso preto de carapinha grisalha, figura influente, guia espiritual duma população numerosa e senhor num território tão vasto como o Alentejo. Era admirado pela sua sabedoria e pela verdade com que manifestava os anseios do seu povo, de que era mandatário de linhagem.

- Então e só agora vem dizer-nos?!
- Ah, senhor, nosso andava a preparar armadilha, mas aquele garramo não tem bom, não. Ginga, ginga...e não deixa apanhar! - e continuaram todos a descrever as animalescas façanhas da fera.
Pelo que os desventurados negros narravam, não era nada comum o comportamento do bicho. Aqueles métodos manhosos assentavam melhor no leopardo, não no leão, um animal feroz, mas leal na sua agressividade.
Por tradição nativa, antes da imposição dos aldeamentos estratégicos, uma família agrupava-se dispondo em círculo as suas palhotas maticadas, cobertas de capim seco e porta de bambu. Surgiam assim, pela floresta, núcleos habitacionais de quatro, cinco, seis casas, em cujos intervalos brincavam os putos do clã.