Acomodado no banco traseiro, fui passeando o olhar pelos passeios molhados, enquanto o velho Mercedes ia rodando, vagarosamente.
Após receber um telefonema de um amigo e em que o tema da conversa girou à volta da aposentação, com referências à CGA, que a dita tardou e....bla´....blá...., o meu ocasional motorista soltou a língua e fez-me saber que também era funcionário público, condutor de veículos dos Correios. Que já havia feito umas horas, logo pela manhã, e que voltaria ao serviço mais para o fim da tarde. Foi-me explicando que anda há poucos meses com o táxi dum primo, fazendo umas horas extras. Que sempre eram mais uns cobres no final do mês e que necessitava mesmo de amealhar mais algum para fazer face a uma situação familiar complicada.
Não tenho por hábito comprar de barato estas estórias que qualquer desconhecido vai vendendo, sabendo todos das patranhas que se vão contando pelas esquinas de Lisboa.
A minha intuição, fruto de amadurados anos, e a forma veemente e sincera como o homem ia narrando os pormenores do seu problema, não me permitiram que a conectasse ao muro das falsas lamentações.
Aquele homem ia falando a verdade.
Que os cinquenta anos de idade ainda lhe não permitiam a reforma, que tinha duas netas ainda crianças e cujas fotos tive ocasião de ver estampadas no mostrador do seu relógio.
A neta mais velha, com seis anos de idade, padecia de doença grave e que este "biscate" de motorista lhe trazia alguns proventos para fazer face aos gastos da filha com as tentativas de lhe debelarem a leucemia que lhe fora detectada.
E lá foi gastando as palavras e os lamentos até ao fim da viagem.
Já no destino, não deixei de reflectir na situação daquela família, no problema da criança e, sobretudo, na genuína preocupação do taxista/carteiro que, não me foi difícil perceber, tem como meta e farol de vida, no imediato, resolver o problema da neta. Mesmo que tal implique hipotecar ao trabalho extra horas do seu merecido descanso.
E, simultaneamente, interrogar-me das razões que nos levam, humanos, a divergirmos tanto, nos conceitos e nas práticas de vida.
Enquanto homens, como este, se preocupam com a saúde, o futuro e o bem estar das suas crianças, outros urdem situações degradantes que as ferem e marcam para toda a vida. E se muitos dos primeiros são gente simples e anónima, já a maioria dos últimos são indivíduos "bem na vida", alardeando cultura e formação civilizacional, enquanto se comportam como monstros desumanizados. (Sabe-se do que estou a escrever...).
Que alguém me explique, me faça entender das razões de tanto paradoxo!