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sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Crime...digo eu!




Sei que os alarmismos exagerados não são benéficos, nem contribuem para um clima de segurança a que a esmagadora maioria aspira e a que tem direito. Mas assobiar para o lado como nada esteja a acontecer neste país tradicionalmente pacífico, nada resolve ou tranquiliza.
Darem-nos a conhecer estatísticas, tentarem-nos convencer de que os índices da criminalidade estão em rota descendente, mais não podem ser que paliativos reconfortantes, informados que vamos sendo de tudo o que se vai passando por este país fora. Nos grandes centros, mas também, e a um ritmo inusitado, nas cidades, vilas e aldeias do interior.
O que não surpreende. Sabemos, por experiência de vida, que a criminalidade, a violência, aumenta à mesma velocidade em que o custo de vida aumenta e a economia das famílias se degrada.
E este ciclo que atravessamos é, para a grande massa de portugueses, de dificuldades económicas e consequente degradação social, acrescidas!
Sendo certo que não conhecendo daqueles crimes "de colarinho branco", os nebulosos meandros de compadrios e corrupções de grupos e elites instaladas, aconchegados na teia intocável de proteccionismos, sabemos todos dos sucessivos assaltos a multibancos, ourivesarias, viaturas, pessoas, com recurso a violência, alguns com trágicos desfechos e vítimas. Estes, não há como encobri-los do temeroso cidadão: a máquina mediática serve-os às bandejas, todos os santos dias desta terra...
Nada que os responsáveis deste país não saibam e, pressinto, não esperassem, ao enveredarem por esta exacerbada política economicista, sem preocupações sociais.
E se o encerramento de centenas de postos policiais por todo o Portugal e a permissividade de algumas leis recentes (drástica redução das prisões preventivas, seringas nas prisões...) têm essas preocupações economicistas, poderão, por outro lado, ser um sinal claro de que têm o convencimento de que as condições económicas e sociais das pessoas irá em breve melhorar, sei lá se pensando nos dinheiros que estão a chegar e com as grandes obras que estão a programar!...
Continuaremos a esperar.....para ver!
Hoje, há lugares, há bairros estigmatizados por serem os alfobres e abrigo de gangs violentos. É a Cova da Moura, é o Bairro da Bela Vista, é o de Chelas, o do Cerco...e tantos mais. Sem descrer que, pelo que se vai lendo e sabendo, radicarem nos bairros onde o trabalho social do Estado fracassou, não creio que a origem e os focos da criminalidade grupal esteja tão localizada. Por força das condições que dão origem a esses comportamentos desviantes e que já acima apontei. A degradação económica e social reinante está a dispersar-se geograficamente, a mancha alastrou!
Ainda que essas motivações estivessem presentes, bem diferentes seriam as caricaturas, as marcas psicológicas, de muitos dos que, nos idos anos oitenta, se dedicavam ao banditismo armado. Por esses anos, tive essa percepção, era mais a necessidade de fundos para sustentação do vício "maldito", e era mais o ínvio caminho da aventura, tipo desporto radical em gestação, que levava muitos dos jovens a enveredarem pelas perigosas veredas do crime.
É uma imagem de outros tempos que retrato em mais um conto (inspirado em factos reais) que me saiu das teclas há quase duas décadas:
O Toninho da Taiti
Era o Verão de 1967.
Na Avenida de Roma, ao cair quente da tarde, grupos de senhoras, deliciadas nos chilreios pardalescos do parque arborizado, em passada pendular, gastavam os minutos que faltavam para o capricho social do chá-convívio no Salão da zona.
Perto delas, pontapeando vazios cartuchos de pipocas, a criançada acompanhava-as, em jovem alarido.
Não era inédito este quadro no bairro citadino da fadista Lisboa. E até os velhotes, que se espalhavam, sisudos e alquebrados, pelos bancos da avenida, como parte integrante da paisagem, se tinham habituado ao movimento rotineiro daqueles alegres grupos de vizinhos, mais jovens, nas imediações chiques da afamada pastelaria.
Lá ia a D. Cacilda, esposa do terceiro oficial da Conservatória, a D. Jacinta, do Liceu, a D. Amélia, algarvia, e os petizes; toda aquela gente que dava um pouco mais de vida aos olhos já tão vividos dos idosos reformados.
Os maridos, alfacinhas de gema, passariam mais tarde: o Eusébio estava em forma e os Estádios da Luz e Alvalade, ali bem perto, arrebatavam-nos às esposas, naquelas tardes soalheiras.
Entretanto, mais um chá, mais umas torradas - para as senhoras; os filhos, esses preferiam um sorvete fresquinho, enquanto se divertiam, alheios às conversas adultas das mamãs.
- O meu menino....reparem como é vivaço, o meu Toninho! - e a mamã, uma senhora de jeito desinibido, apontava com a última crónica feminina, que apertava entre os dedos bem tratados, um moço dos seus cinco anos, que cabriolava por entre as cadeiras do "TAITI".
- Lá isso é, menina Amélia, o miúdo tem ares de vir a ser um valente rapagão! E a habilidade com que segura a espingarda!...
O Toninho, de pernas arqueadas, em cima da cadeira, por debaixo do televisor, fazia pontaria para os amiguinhos que, colaborantes, simulavam abrigar-se por entre a clientela indiferente.
- Dá-lhe um tiro, mata-o, Toninho! - E o catraio, de peito eriçado na camisa de ganga azul, com os braços espinafrados, à Popeye e fazendo piscas com os olhitos brilhantes junto à coronha plástica da sua última prenda, lá ia disparando rajadas de intenções: tau.....tau.....tau....
D. Amélia, de olhar comovidamente vaidoso, com a mão no braço nu da D. Cacilda, informava a assembleia do chá que era a quarta arma oferecida pelo Alfredo, seu extremoso marido, ao lindo menino.
- Ele agora, vejam lá, não deixa o pai em paz enquanto lhe não comprar uma metralhadora, ou lá o que é, que viu há dias numa montra do Chiado! Não quer outros brinquedos, o diabo do rapaz!....
- Há-de ser um grande homem, menina Amélia!
- Se há-de, menina Jacinta, um grande homem!
- Um grande homem! - exclamou, em uníssono, o embevecido coro.

E os anos foram passando, gastando-se lentamente pelas serras, pelos vales e, também, naquela avenida de betão alfacinha.
Os velhotes do parque eram já outros: em cada Outono que surgia, o vento levava, por entre as folhas secas, mais uma das figuras do grupo crepuscular.
Outras amigas, mais novas, foram engrossando o caudal daquelas damas que desaguava, quase sempre, nas vistosas arcadas do "Taiti".
Mais meninos, outros meninos, continuavam a ser as fiéis sombras das mamãs nos Domingos de chá.
Os de outrora, já com pêlo na venta crescido, haviam-se libertado das asas galináceas das maezinhas.
Os maridos, aqueles, continuavam no cumprimento do seu "sagrado" dever. O Carlos Manuel até estava a fazer umas jogatanas!....
Era o Inverno de 1985. Foi numa fria manhã, mas sem chuva, que as sirenes irritantes de ambulâncias e Policia, agitaram as ruas da cidade. O Saldanha era um mar de gente buliçosa, que se apinhava à porta do Banco.
Pouco antes, um grupo de quatro embuçados, empunhando pistolas metralhadoras dos últimos modelos, haviam feito um "raid" ao Espírito Santo. O assalto, que em parte fora bem sucedido, apesar do roubo se cifrar em poucas centenas de contos, teve o negro saldo de duas vítimas roubadas à vida. Uma foi o caixa, que se recusara a satisfazer as exigências dos assaltantes. A outra foi o marginal que sobre ele disparara, duas vezes, sem piedade. A Policia, que entretanto acorrera, surpreendeu-o a sair do Banco, quando os comparsas se haviam já posto em fuga, recreando-se com mais uns tiros para a montra largo do estabelecimento.
Era um rapaz dos seus vinte e poucos anos, de forte compleição física, botas de tacão alto, com o cabelo negro caído, em desalinho, por sobre o pescoço ensanguentado. Era um desconhecido. Caíra, sob as balas dos agentes da ordem, na borda da sarjeta.
Quem seria?
Horas passadas, os investigadores apenas sabiam que a pesada pulseira de prata que trazia no pulso direito, tinha inscrito o nome "ANTÓNIO". No reverso, lia-se a dedicatória "MÃE AMÉLIA".
O corpo gelado do "pistoleiro" aguardava num dos bocados de frio mármore da Medicina Legal. Quem o iria reconhecer?
Noite alta, depois de várias centenas de pessoas terem desfilado pelo lúgubre corredor, chegou a vez de tão respeitáveis senhoras passarem os olhos curiosos pelos rostos do "ANTÓNIO". E foi reconhecido!
- É o meu Toninho! Que desgraça, meu Deus! Quem matou o meu rico filho?
- Menina Amélia, será possível? O Toninho um assaltante, um assassino? Que desgraça!.... e a trémula Cacilda recolheu nos braços o rosto amargurado da sua amiga.
- Cacilda - sussurrou em voz tíbia aquela sofrida senhora - o meu filho....que eu tão bem eduquei, a quem nunca recusei nada, a quem dava tudo, tudo o que me pedia, o meu filho....que podia ser um Homem!...
- Podia ser um Homem! - murmuravam chorosas as três senhoras, unidas naquela imensa dor.
Podia ser um Homem, o Toninho!